Numa tarde de verão, as ondas batiam mansamente nas areias da praia. O sol de um laranja avermelhado, escondia-se por detrás das ondulações da serra do mar.

Sentada sobre um tronco de árvore trazido pela maré, Lisa olhava o horizonte que à sua frente se descortinava.

Acompanhava o vôo perfeito das gaivotas que revoavam ora para cá, ora para lá, mergulhando nas águas de quando em quando a fim de apanharem um robalinho, corvina ou parati.

Lembrou de um fato contado pelos pescadores, onde um turista ao passar pelas areias monazíticas da praia, encontrou uma ave ferida tendo um aro metálico de identificação de uma instituição inglesa, em uma de suas pernas.

Imaginou como ocorriam essas migrações e que distâncias imensas percorriam! Viriam sós ou em bandos?

As ondas continuavam no vaivém e debilmente umedeciam os pés da moça. Apanhou do chão um ramo seco fazendo com ele círculos vigorosos na areia úmida e rapidamente levantou-se, apanhou seu chapéu de palha molhado pelos respingos das brumas do mar e foi caminhando pela praia, levantando as brancas espumas com as pontas dos dedos de seus pés.

Chegando em casa abre uma gaveta onde está uma velha caixa de madeira com fotos de familiares. Vasculhando a papelada, encontra uma foto e a contempla demoradamente. Ali estava uma jovem linda, cabelos ondulados muito negros, olhos verdes, usando um vestido de seda bordado com flores e finíssimos fios brilhantes. Pernas bem torneadas, mostravam joelhos perfeitos e um sapato de verniz com laçarote de gorgorão.

Que bela mulher !

Era Delia sua mãe, que nascera numa cidadezinha do interior do norte do Estado de Santa Catarina, na década dos anos vinte.

Crescera entre eucaliptos balsâmicos e altaneiros pinheiros, sentindo o cheiro penetrante do estrume dos animais aquartelados nos currais e das madeiras cerradas no local.

A madeireira empregava quase toda a população masculina da cidade e fomentava o vaivém dos carroções, dos caminhões precários, das pequenas embarcações do rio Negro e os vagões da então fumegante “Maria Fumaça”.

Se por um lado trazia riqueza e emprego, por outro devastava a floresta de araucárias. Lisa lembra dos comentários que sua mãe fazia sobre sua infância e juventude e passa a imaginá-la indo até a janela, apoiando os cotovelos no peitoril de imbuia e observando as ruas empoeiradas mais parecendo imensos saguões, além dos quintais de seus vizinhos com pomares repletos de árvores frutíferas .

Aquele agora era seu mundo, mas ela desejava mais, muito mais! Não pretendia restringir-se àquela pequenina cidade querida, porém monótona, com uma população conformista sem muitos ideais, onde o cotidiano era escutar o mugido dos bois, o cantar da passarinhada, o ruído dos carroções, o coaxar de sapos e rãs nos brejos e o apito do trem.

Diariamente as moçoilas se enfeitavam para verem o trem chegar. Alvoroçadas e às escondidas, pintavam maçãs do rosto e lábios com uma mistura feita com papel crepom vermelho e água e faceiras em suas roupas simples iam flertar com os rapazes viajantes.

Meninos com cestas cobertas por alvas toalhas tentavam vender produtos artesanais e em algazarra gritavam por entre os vagões − olha o amendoim torradinho, a cocada branca e bem pretinha, o pastel de carne bem quentinho! Quem quer comprar?

A partida do trem gerava tristezas e a esperança de um dia nele estarem também. Voltavam às suas casas situadas lateralmente à linha férrea com ruas paralelas sem fim. Eram casas de madeira os bangalôs e chalés estilo europeu. Os moradores dali descendiam de etnias como polonesa, russa, ucraniana, síria, portuguesa e outras. Delia via-se partindo dali com o piúuuuu... piúuuuu... piúuuuu... do apito do trem sem importar-se com os rolos de fumaça negra que saiam da chaminé.

Criativa e hábil para tarefas que exigiam habilidades manuais, costurava as roupas para ela, irmãs e amigas quando das festividades na cidade ou os tão esperados “saraus dançantes” do último sábado de cada mês.

No carnaval organizava blocos e ela mesma como já prenunciava a modista, criava modelitos de palhaços, bailarinos, arlequins, pierrôs, odaliscas e nos cabelos usavam flores naturais ou em seda e mesmo as vinchas (lenços ou fitas) ficavam impecáveis para a folia!

Nos salões fervilhavam confetes e serpentinas e os lança-perfumes n ao proibitivos à época, eram usados em profusão! Que brincadeira saudável era a folia momesca que ia até o amanhecer!

Délia sabia que iria sentir falta de tudo dali, inclusive de um fato que ocorria duas vezes ao ano e era emocionante e aguardado com ansiedade pela população, principalmente a meninada... a chegada do circo!

O circo era sinônimo de mudança, de novidade, de alegria, de quebra da monotonia, a cidade se transformava e a curiosidade era direcionada para a trupe circense.

A criançada alvoroçada acompanhava o cortejo... onde artistas e animais eram observados e quando viam o palhaço, gritavam entusiasmados:− e o palhaço o que é? ...é ladrão de mulher!!! ...e o palhaço o que é? ...é ladrão de mulher!

Delia achava esse refrão provocativo. Não menos interessante era o homem da perna-de-pau com seu paletó listrado e cartola preta lá no alto a se equilibrar, admirava a coragem do domador em enfrentar as feras com sua chibata de couro a estalar para impressionar!

E o que dizer dos trapezistas criativos e valentes, das bailarinas no arame com suas sombrinhas multicoloridas e o mágico de cartola e bengala .

De todas as atrações porém a que mais chamava a atenção eram os palhaços. Roupa espalhafatosa, pinturas berrantes nos olhos esbugalhados, boca enorme e pintada de branco e vermelho, no pescoço gola imensa e solta que favorecia a comicidade para uma platéia que ria sem parar.

Que figura hilariante é o palhaço!

Lisa acorda do sonho, observando agora uma foto de sua mãe já na terceira idade e acometida pelo mal de Heilzeilmer. Quanta diferença numa mesma pessoa e dessa doença se sabe que a memória recente fica comprometida e retomando seu passado na cidadezinha onde morou e bem lá nas profundezas de seu cérebro, quiçá sons dos apitos dos trens nos seu piúuuuu... piúuuuu... piúuuuu... os rolos de fumaça da Maria Fumaça que corre ruidosamente pelas paralelas, estejam também a algazarra dos piás da plataforma da estação vendendo seus doces de leite, pés-de-moleque e cocadas, talvez o cheiro do estrume do gado, da relva úmida nos dias de chuva ou a lembrança das noites de verão onde a Lua iluminava a terra fértil e os pinheirais !

Quiçá esteja ainda em sua lembrança as ruas animadas com pessoas esperando o circo passar, suas amigas Marquinha, Helena Kolody, Inês, as irmãs Ana, Marieta e Rosa, o irmão Juca!!

Talvez lá estejam também o homem da perna-de-pau, os trapezistas, as bailarinas, os domadores e os espetaculares palhaços e junto a esses...

E o palhaço o que é?

É ladrão de mulher!

E o palhaço o que é?

É ladrão de muuu..lhe...rrrrrrrrrrr!!!

Este conto é uma homenagem à Adélia,
mãe da autora.

 

 


 


 

Pelo EnvioWebaguia

Pelo Outlook

 

Fale com a autora:  lyzcorrea@hotmail.com


Adicionar este site aos seus Favoritos
|    Home    |    Menu    |    Voltar    |

|    Livro de Visitas    |



Desde 29.01.2010,
você é o visitante nº


Página melhor visualizada  em Internet Explorer 4.0 ou Superior: 1024 X 768
Copyright© A Gralha Azul - 2009 - Todos os Direitos Reservados